"Um dia o peito desenferruja e a gente abre mão do que há de vir" (Gabito Nunes)

sábado, 25 de junho de 2011

"Your Body is a Wonderland"

Ele adormeceu no meu sofá rasgado enquanto assistia a um jogo de tênis, no canal dois. Dormia um sono de fundo de poço. Seria desperdício acordá-lo, sem antes admirar suas feições fortemente marcadas, no rosto de homem-guri. O respirar era suave, e fazia meu peito inspirar e expirar, inspirar e expirar ao mesmo ritmo. Os cílios superiores repousavam delicadamente nos inferiores, enquanto os lábios, macios e quentes, roçavam ou no outro de vez em quando. Os fios de cabelo, excessivamente jogados a testa, e um tanto bagunçados, estavam exatamente de acordo com o que vestia: calças largas e camisa do mercadinho da esquina.

Era como um ponto de atração, e eu sentia como se toda a gravidade do centro da Terra tivesse se transferido para seu corpo. Percebi, naquela hora, que já não andava com o coração às mãos. Havia o perdido, sem me dar em conta, sem ele haver deixado pistas, porém desconfiava do seu rumo...

Já havia dado o primeiro passo no escuro, só me restava então, seguir às cegas, por um caminho que me parecia certo. Segui em direção dos seus braços, que ao me envolver, me juravam em silêncio, cuidar bem de mim, e do meu coração, onde quer que ele estivesse.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Descompasso


Vai caminhando sob a faixa amarela, no meio da rua vazia. Olha o céu e não consegue ver as estrelas. Respira fundo o ar gelado da noite de inverno, esperando que talvez ele possa congelar reminiscências indesejáveis. Seu pensamento indomável foge do seu alcance. É algo maior, vai muito além de um metro e setenta.

É como se houvesse um lugar no seu coração que entorpeceu, e que foi reservado para doer de vez em quando. E não é qualquer anador que resolverá o problema. Uma dose de tempo, talvez. Na verdade, mais uma.

Já não acredita em cura. Acredita que acostuma. De certa forma, aprendeu a lidar com os descompassos do coração, que mais uma vez, perdeu o ritmo no meio da dança, pois há tempos essa música não lhe agrada.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Últimos Planos


Recolhem os pratos, com que alimentaram seus últimos planos juntos. Decidiram que seguiriam seus caminhos, mas não mais lado a lado. Dividiram os discos, os livros e as canecas de chá. Ela ficou com a estante e ele fez questão de levar o sofá. Desfizeram-se dos presentes e da aliança de compromisso que agora não era nada além de um elo de metal.

Não acharam certo que algo que os havia feito tão feliz, acabasse com tristeza. Então, ele forçou um sorriso, que fez sustentar o seu olhar calmo. A sua mão tocou o trinco gelado ao mesmo tempo em que ela o abraçou com seu moletom um tanto grande, mas que a deixava com um ar de menina do colégio.

Ele foi e a recomendou que não andasse sozinha à noite. Ela fechou a porta, tentando buscar em si qualquer resquício de felicidade, alguma faísca daquilo que a fazia sorrir. Colocou um prato solitário na mesa, pois era hora de alimentar novos sonhos e planos, e agora, fazia aquilo por si só.

domingo, 5 de junho de 2011

Folha Amassada


Não se importa muito em ser sozinha. Não faz tanta diferença não ter ninguém pra ligar de madrugada, ninguém para ouvir suas piadinhas sem graça, ninguém para atravessar a cidade por ela. Não lhe parece tão difícil. Sempre foi assim. 

O pijama já virou roupa de semana, e isso não nega que não espera nem pelo entregador de pizza. Se enterra no sofá e se cobre até a nuca com o cobertor azul piscina. Já viu pela tevê um programa de culinária, um jogo de futebol de um time europeu, a novela das seis e um documentário sobre a Amazônia.

É tarde, e nem lembra se viu o sol naquele dia. Pensa em ler alguma coisa, mas se cansou tanto de não fazer nada que prefere ir para cama. Parece frágil e imprestável como uma folha amassada. Julgam-lhe ingênua, que não conhece as dores da vida.

Sempre seguiu bem assim, e seus poucos sorrisos foram auto-suficientes para lhe manter feliz. Apesar de poucos saberem, ela tropeçou e caiu incontáveis vezes, mas seu coração teimou em continuar batendo, mesmo que um tanto ralado. Não esperou muito, na verdade não esperou. Tudo que lhe veio foi lucro.

Ela não tem ninguém do seu lado. Sempre que precisou fazer, superar, batalhar, ela o fez sozinha. É forte na sua solidão. Ainda traz a esperança, que muitos já perderam. Continua andando. Caminha devagar, mas não para. Pois afinal, quem sabe onde termina a estrada? 

(Texto para o 1º Concurso ABL)